Ciência é colaboração

Neste mês de novembro o Jornal da Unesp traz uma entrevista comigo, feita pelo Oscar D’Ambrosio. Como por motivos de espaço ele precisou omitir partes da resposta, publico aqui a íntegra da entrevista, espero que achem interessante.

(As diferenças para o texto do jornal estão na terceira pergunta, que foi omitida, e na quarta pergunta, cuja resposta foi abreviada.)

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1) O que se entende por ciência aberta hoje? Como surgiu o conceito e qual são seus principais passos?

O entendimento mais completo é a ideia de que a informação científica, dos dados ao design de instrumentos aos métodos às conclusões, deve ser compartilhada tão cedo quanto possível no processo de pesquisa. Ou seja, tornar a pesquisa um processo transparente e colaborativo, onde a competição ocorre baseada simplesmente em contrbuições à inovação e progresso da ciência, e não na restrição de acesso e no tratamento de ideias como propriedade.

Isso é possível, e vantajoso para a ciência, pois alinha a prática de pesquisa aos mecanismos fundamentais de difusão, replicação, incrementação e crítica que garantem o avanço e validade das ideias científicas e as justificam como investimento da sociedade. Também quanto mais transparente e colaborativa a ciência, mais a comunidade é capaz de rastrear a origem das contribuições e atribuir crédito onde é devido, estimulando a competição sem recorrer a segredo, intermediários e sem obstruí-la através de restrições pouco compatíveis com o uso público da razão que a ciência representa.

2) Na sua concepção estamos caminhando para uma sociedade em que predominem a ciência cidadã e a educação aberta?

Estamos lutandor por isso. Ano passado um grupo de pesquisadores de diversas áreas iniciou um grupo de trabalho para lidar com esse tema e tem havido interesse e participação por pesquisadores de diferentes gerações. Também do lado da sociedade tem surgido um movimento, desde pontos de cultura até espaços mais autônomos como hackerspaces. Também na educação, onde vivemos um momento de decadência do sistema educacional nas sociedades liberais que insistem num modelo hierárquico, há exemplos de grande sucesso de iniciativas de educação aberta, com uso de recursos educacionais abertos, currículos flexíveis, ensino ativo e metodologias participativas, além de na educação básica um interesse por escolas democráticas ou que incorporam elementos dessas,

3) Quais são as principais ferramentas científicas e hardwares desse universo?

Hoje a pesquisa de ponta em instrumentação científica aberta parte do CERN, o grande laboratório de física, que tem publicado os desenhos de instrumentos com uma licença livre, que permite reutilização irrestrita, chamada CERN Open Hardware License. Também montaram um repositório para qualquer um compartilhar e colaborar em instrumentos, desde que usem a mesma licença que garante a liberdade desse conhecimento. No Brasil, institutos como o LNLS tem usado e contribuído desenhos para esse reposiório. Outros exemplos são o IFRN, que foi premiado com um desenho de estação meteorológica em hardware aberto. E talvez o centro institucionalmente mais avançado nessa discussão seja o CTA-UFRGS, Centro de Tecnologia Acadêmica, onde o professor Rafael Pezzi e sua equipe vem buscando desenvolver uma linha de produção para novos instrumentos toda baseada em hardwares e softwares abertos.

4) A sua visão é otimista ou pessimista em relação ao futuro dessas iniciativas?

Otimista, como deve estar transparente pelas respostas anteriores!

Mas restam muitos desafios a enfrentarmos, culturais, institucionais, legais, de massa crítica e de políticas e visão da ciência no Brasil.

Uma área em que somos particularmente retrógrados é no nosso entendimento da relação entre política científica e industrial, em particular na nossa visão colonizada do sistema de patentes. Ainda assumimos a falácia de que defesa e produção de patentes significa vantagem competitiva para nossas indústrias e vantagem econômica para as universidades. Acontece que, mesmo nos países industrializados e em muito melhores condições de explorar esse sistema, ele pode ter o efeito oposto. E torna-se ainda mais prejudicial e incoerente num sistema acadêmico público como o do Brasil.

É claro que sugerir uma associação inversa entre patentes e inovação pode parecer estranho para quem observa as políticas em implementação no Brasil, mas tal oposição não é novidade para estudiosos do assunto, encontrando-se desenvolvida em trabalhos do prêmio nobel de economia Joseph Stiglitz, do professor, emérito de Stanford e Oxford, Paul David, e de outros economistas como Michele Boldrin e David Levine. Ela encontra-se refletida na histórica econômica, de países como os EUA e a China, e em ações atuais de empresas como a norte-americana Tesla, que recentemente abriu mão de suas patentes para estimular a inovação e o livre mercado, e os membros da Open Invention Network, dentre eles Red Hat e Google, todos detentores de patentes que denunciam abertamente o prejuízo que esse sistema tem causado à inovação, abrindo mão desse monopólio, em diversas aplicações.

Assim, as diretrizes e a formulação ideológica da propriedade intlectual nas universidades brasileiras precisa urgentemente ser atualizada, porém o que tem ocorrido ainda é o movimento oposto, e parecemos incapazes de aprender com as lições vividas pelos colegas no exterior.

Um fenômeno parecido pode ser notado na educação, onde ao invés de buscar superar o paradigma da educação industrial, até para contornar sua inexorável decadência já reconhecivel em países como os EUA, insistimos num modelo de sobrecarga curricular e incentivos baseados em exames padronizados, que já se demonstraram ineficazes lá, onde foram concebidos. Assim, antagonizamos as oportunidades cognitivas e tecnológicas em que os jovens hoje se desenvolvem, ao invés de aproveitá-las. E não faltam bons exemplos no próprio país, mas para ter escala poderíamos observar outros países de cultura liberal onde a educação tem tido contínuo progresso, como no norte europeu, onde redução radical da carga curricular e valorização da autonomia do aluno e adaptabilidade dos materiais tem, irônicamente, garantindo até sua posição superior nos exames comparativos internacionais.

Quem tiver interesse nesses assuntos pode conhecer mais e ingressar na lista de emails do grupo de trabalho, pelo endereço https://www.cienciaaberta.net/

Um dos facilitadores do grupo e pesquisador no laboratório LISIS-IFRIS em Paris, desenvolveu pesquisas na FMUSP, Fiocruz, Columbia University e IFUSP. Também é um cavaleiro que diz... Ni!

2 Comments on “Ciência é colaboração

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